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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A propósito de... "ter vida"

Coisa curiosa, nos tempos que correm, é constatar que, não raras vezes, aqueles que nos dispomos a ajudar, por quem muitas vezes fazemos esforços e sacrifícios, nos vêm cuspir na cara - à laia de quem receia ser cobrado e tem medo de se sentir em dívida - que se fizemos por eles aquilo que fizemos é porque «não temos vida». Querem eles dizer que só concebem que alguém esteja disponível para o outro se não tiver vida, ou se a sua se tiver esvaziado, o que vem a dar no mesmo.
Nunca percebi bem qual é o seu intuito ou qual venha a ser o último alcance da expressão.  Não sei se com isso querem tirar-nos as ilusões, deixar bem claro que se fazemos é porque queremos, que (atendendo a que não nos apontaram uma arma á cabeça para nos obrigar) não têm nada a ver com o assunto, deixando calro que, ainda que tenham tirado o respectivo proveito do gesto, não se sentem minimiamente em dívida para connosco. Ao limite, suspeito que com isso nos queiram, na verdade, dizer que (contas feitas!) são eles quem nos está a fazer o favorzinho de acrescentar conteúdo à nossa vida.


Eu, pelo meu lado, leio nas entrelinhas e concluo o óbvio: quando o dizem mais não fazem do que se apressar a tirar-nos desde logo qualquer ilusão. Tratam de se descartar da mais remota possibilidade de esperarmos algum dia que façam o mesmo por nós só porque algures no tempo o fizemos por eles.

E, neste sentir, leio ainda algo mais: sentindo-se assim tão mal por verem fazer-lhes o que não estão certos de alguma vez serem capazes de fazer pelos outros, tratam de passar rapidamente a incomodidade de mão. Dito de outro modo, fazem parecer como se não devam ser eles a sentirem-se mal por não o virem a fazer, mas os outros por um belo dia o terem feito. Eles? Não! Nunca. Jamais. Eles «têm vida». É por isso que não fazem, não podem fazer e será uma injustiça alguém esperar deles que o façam. Os outros é que devem sentir-se mal. Por o terem feito, por terem podido fazê-lo, por nem ter sido preciso esperar outra coisa senão que o fizessem. Porquê? Porque «não têm vida». Terem-no feito só foi possível por isso: por não a terem. E toda a gente sabe que «não ter vida» não é algo que mereça agradecimento. Bem pelo contrário! Merece é lástima. Merece é que não se aspire a padecer do mesmo e ser igual.

Assim são os tempos que correm!... Perversos.

No meu tempo isso - tudo isso a que me refiro - tinha outro nome. Chamava-se-lhe ingratidão. E ponto final.

No meu tempo - o que agora há e o que houve e já ficou para trás - «ter vida» era e continua a ser sinónimo de outra coisa. Não estar disponível para os outros, não se incluía (seguramente!) na lista. Bem pelo contrário! Mas se acaso, por decisão não comunicada da maioria, o sentido de «ter vida» mudou, apenas se me oferece dizer que fico de bom grado com a tal "não-vida". Pela simples razão que não sei e dispenso saber o que seja isso de «ter vida» sem que o espaço para os outros lhe caiba dentro. Deve ser uma vida muito estreita e apertada e acontece que eu sempre precisei de largueza e horizonte.

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